
Não tinha muito do que reclamar, porque, na minha visão, da minha numerosa família eu era o preferido dos meus humanos. Nunca fui bom em decorar nomes, por isso, sempre chamei a esses, que nos fornecem comida, de humanos. É assim que eles se chamam não é? “Humanos”...
O tempo passou de pressa, e logo notei que aquele cachorrinho mirrado e bonitinho começou a se desenvolver, eu comecei a me desenvolver; Músculos, sim, sempre ouvi essa palavra – “Nossa, como o nosso Branco é musculoso! Que cachorro forte!”.
Um dia, lá pelos meus 8 anos, um filhote de humano estava me aporrinhando ( é esse o termo mesmo), enquanto eu tentava me alimentar... tentava... porque ela não me dava paz. Sempre aturei o mais pacientemente possível o que esses filhotes de humanos me submetiam, mas aquela manhã não era um dia como outro qualquer.
Naquela manhã, o dia estava nublado, e por conseqüência, não pratiquei meus exercícios como era de costume. Humanos parecem ser de barro, não gostam “disso” que eu bebo no meu pote quando cai lá de cima; é água! Qual o problema?
Por conseqüência, fiquei trancado... Enfim chegou a hora que eu tanto gosto. A hora da comida! Não bastando estar trancado, lá vinha o filhote de humano pra me atazanar enquanto eu tentava comer... mas dessa vez, eu daria um susto nela!
Enquanto eu comia, o filhote de humano ficava puxando meu rabo, minhas orelhas, puxa vida!! Como doía! Resolvi então dar um chega pra lá nela e “de leve”, assim como minha mãe sempre fez comigo, dei-lhe uma mordida! Mas não era pra machucar, era só pra afastar... Era...
Se eu pudesse voltar atrás, amigos, daria a vida por isso! Não como os felinos imbecis, que tem sabe-se lá quantas vidas, mas vocês me entendem não é mesmo?
O "humano chefe" chegou correndo, e já me chutou com força... mas o que foi que eu fiz? Só queria comer em paz!! Meus exercícios, cadê? Minha tranqüilidade!?!
Fiquei trancado no porão até a luz cair e reaparecer, muito tempo depois. Nem sei por quantos dias... Sem água e sem comida. Quando a porta se abriu, a luz me incomodou um bocado. Não houve carinho,nem exercícios, nem a palavra “musculoso”, tão habitual. O que houve foi uma corrente passando pelo meu pescoço violentamente, e na seqüência, já fui puxado pra parte de trás daquilo que os humanos usam para se locomover. Essa lata sobre rodas.
Passear, uma hora dessas? Estou fraco, faz tempo que não como, e que sede!!
Reparei pela janela que nunca tinha ido aquele lugar, só havia mato, e mais nada! A coisa de lata pára e meu humano desce, e vem ao meu encontro...
Ele me puxa pela corrente e anda na minha frente, ele nunca faz isso, sempre andou do meu lado, éramos parceiros! Mas os seus olhos não me enganam, nunca vi aquele olhar triste.
Ao chegar numa árvore, ele passa a corrente num galho, me prende, e senta-se ao meu lado e começa:
- “Como você pode White, sempre teve de tudo! TUDO!! Como pode fazer o que fez com minha filhota!? Todos me alertavam que era perigoso, que eu não deveria confiar tanto assim, que sua raça era instável, não era confiável” e por ai afora...
Como eu gostaria de saber falar, bom, falar esse linguajar estranho dos humanos, me defender! Na primeira pisada na bola já serei descartado assim? Que covardia!! E os anos de companhia, de dedicação e paciência? Como é que ficam?
Meus músculos já não são como outrora, tenho lá meu porte, meu garbo, mas não o suficiente para arrebentar esse galho e correr atrás dele, voltar para minha casa, meu mundo!
- “Não me deixe aqui humano, mordi seu filhote mas não foi por mal, só queria comer em paz! ”, gritava eu, bem alto, mas ele sequer olhou para trás... me deixou atrelado a árvore a partiu, com sua lata sobre rodas...
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Estou definhando, sequer consigo me manter em pé, mas nunca me esquecerei dos dias gloriosos que vivi com meus humanos... Nunca. Não sei o que significa ingratidão, ou rancor , essa que é a verdade. O "Valhalla canino" me aguarda...
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Guttwein, T.
